Relato de uma mulher que não se calará*

(*preservamos a identidade para não expor a pessoa. Os relatos podem ser enviados para o email quemmatouricardo@riseup.net)

No dia 31 de julho meu destino de alguma forma cruzou com o de Elvira Ferreira da Silva. Quando eu estava chegando na universidade com muita fome só pensando se daria tempo de encontrar as portas do Restaurante Universitário abertas, me deparei com uma cena de filme de terror, Ricardo Ferreira Gama estava jogado no chão todo ensanguentado, com três monstros em cima dele, muitas/os estudantes e trabalhadores/as estavam indignados/as em volta, mas ninguém conseguia impedir as agressões. Toda a fome desapareceu e eu só sentia indignação, raiva e muita vontade de gritar.

Não pensei duas vezes quando gritei, ameacei e tentei proteger com minha própria vida a vida de um companheiro, não sei se foi solidariedade de classe, se foi solidariedade de mulher com a Elvira, se foi “loucura”, apenas sei que o que senti naquele momento foi mais animal do que humano, uma vontade imensa de pegar o Ricardo e sumir com ele dali e protegê-lo, como Elvira faria.

Quando falamos de direitos humanos, vejo nisso um conceito vazio, defender um “politicamente correto”, quando nos indignamos e lutamos com toda paixão por uma causa não é luta por direitos, é luta por sobrevivência, e isso tem mais relação com o animal do que com o humano. E é essa luta que a maioria das/os militantes dos direitos humanos fazem, por isso são perseguidos/as, chamados/as de loucos/as, ou defensores/as de bandidos/as, porque reproduzimos a ideia que nesse Estado quem é da classe trabalhadora ou está “bem comportado” ou é bandido/a.

Mas o que quis dizer quando falei que minha vida cruzou com a de dona Elvira. Não conheço essa mulher pessoalmente, mas sei que sua dor é a minha, seus pesadelos nos últimos dias são os meus, tenho uma vontade enorme de voltar no tempo e reverter essa história. Mas não podemos voltar no tempo, não podemos construir lutas no passado, podemos olhar para o passado e construir lutas no presente, e muitos Ricardos ainda estão por aí, na favela, nos centros, nas faxinas e nas fábricas. A luta de classes é isso: amar quem a gente não conhece, lutar por aquele que sem dúvidas sabemos é igual a nós. Naquela quarta-feira, não tive nenhuma dúvida de que lado estava, sabia que não era do lado daqueles homens fardados e armados que ameaçavam a todos e principalmente ao Ricardo, não só eu como outros/as companheiros/as defendemos com nossas vidas, hoje eu só tenho uma certeza e é a mesma de Elvira:

“É muita coincidência uma coisa acontecer em um dia, e no outro o meu filho ser baleado, ser morto daquele jeito. Ele não tinha inimigos para ser morto daquele jeito. Não tem outra explicação, foi a polícia que matou o meu filho” Elvira Ferreira da Silva.

Quem matou Ricardo foi a Polícia Militar e o Estado brasileiro apoiou, e todos/as que se calarem serão cúmplices.

Somos todas/os Mães de Maio e vamos transformar o LUTO em LUTA.

Obrigação e Mérito | Marcus Vinícius Batista

Origem: http://gizsemcor.blogspot.com.br/2013/08/obrigacao-e-merito.html

Ricardo Ferreira Gama, em imagem antiga

A morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos, engrossa o cardápio de exemplos sobre como o Estado e seus agentes públicos costumam se comportar em momentos de crise. A postura envolve uma série de características que se repetem na crença de que somos crianças abertas a ouvir o rosário de histórias da carochinha.

Polícia Militar e Polícia Civil, depois de desdenhar testemunhas e se apressar para enterrar a história no rodapé de seus arquivos mortos, resolveram se mover. Por que a mudança? No circo do óbvio, as duas corporações saíram da hibernação diante do atestado de paralisia exposto não apenas pela imprensa, mas também por centenas de pessoas nas redes sociais.

Há cinco dias, a Polícia Militar falava em falta de provas. Engavetou um inquérito preliminar. A Polícia Civil, por meio de um de seus delegados, jurava não ter visto sinais de agressão no auxiliar de limpeza da Unifesp.

Para amenizar o impacto da negligência, as duas instituições partiram para a estratégia de sempre: transformar obrigação em mérito. A Polícia Civil enviou para Santos um delegado do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, mais um grupo de investigadores. O crime aconteceu há 11 dias. A Polícia Militar também mudou de ideia. Agora, encaminhou o caso para a Corregedoria e para a Secretaria de Segurança.

A metamorfose também contaminou a própria Unifesp. Depois de quase duas semanas, a universidade largou o bastão dos omissos e divulgou nota oficial. A instituição resolveu, agora, repudiar o crime e oferecer ajuda à família do auxiliar de limpeza.

Para completar a redundância, a Unifesp pretende discutir a segurança do bairro com as autoridades. Após tantos assaltos, foi preciso aparecer um corpo para que a instituição se mexesse e entendesse a urgência de pensar a violência além da retórica.

Quando o mérito é insuficiente para mascarar obrigações, a ordem é avançar na ilusão da caridade. Neste sentido, é necessário falar em colaboração e deixar que isso soe como favor. Inverte-se a lógica da acusação. São curiosas, por exemplo, as declarações do advogado dos policiais.

Alex Ochsendorf, que foi policial militar enquanto estudava Direito, disse, em entrevista ao jornal A Tribuna, que os PMs “disponibilizaram os números de seus respectivos telefones e estão abrindo a intimidade deles para provar que não têm participação no crime ou nas supostas ameaças após a morte de Ricardo.”

É parte do espetáculo jurídico o blefe dos advogados. Mas é um insulto à inteligência crer que vamos engolir como favor as informações fornecidas pelos policiais. Eles estão sob investigação. Precisa dizer mais?

Além de nos conceder favores, transformar obrigação em mérito implica em cuidar das palavras. Trocá-las. Acariciá-las. Ajeitá-las para diminuir a gravidade dos fatos. Para o advogado dos PMs, as lesões no rosto do auxiliar de limpeza foram reflexos do “estado alterado” da vítima. O que isso significa? Que Ricardo se debateu a ponto da cabeça dele atingir as mãos dos PMs?

Enquanto todas as instituições tentam encenar seus papéis no teatro de sangue, os estudantes ficaram com o ônus da vida real. Muitos universitários estão fora da cidade ou morando em casas de amigos. Um deles, que presenciou a abordagem policial, fez – segundo reportagem de Bruno Lima, no jornal A Tribuna – um pedido de inclusão no Serviço de Proteção às Testemunhas, programa ligado ao Ministério da Justiça.

Para que mérito e obrigação não se diluam em impunidade, é fundamental que a história seja acompanhada não apenas pela imprensa, mas por todos nós. A questão não é julgar e condenar os policiais por antecipação. Eles precisam realmente provar que não mataram Ricardo. É direito deles á defesa. Mas, no mínimo, precisam retornar à academia porque dezenas de estudantes testemunharam uma lista de erros crassos de abordagem policial.

Só não espere das instituições a extinção da inércia. A cultura da paralisia está enroscada até nas tripas do poder. Ela pode se manifestar também pela transferência de responsabilidade. Coincidência ou não, um grupo de pessoas, composto por juristas e religiosos, além de representantes de entidades que trabalham com vítimas de violência, vai entregar essa semana uma carta ao governador Geraldo Alckmin.

O documento pede a criação emergencial de uma política de combate à tortura. A carta tem relação direta com o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que deve ser implantado em todos os Estados. Sabe o que a Secretaria de Justiça de São Paulo disse ao jornal Folha de S.Paulo? O assunto é de responsabilidade da Assembleia Legislativa. Só nos resta esperar quem ficará com o mérito depois da obrigação cumprida.