Obrigação e Mérito | Marcus Vinícius Batista

Origem: http://gizsemcor.blogspot.com.br/2013/08/obrigacao-e-merito.html

Ricardo Ferreira Gama, em imagem antiga

A morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos, engrossa o cardápio de exemplos sobre como o Estado e seus agentes públicos costumam se comportar em momentos de crise. A postura envolve uma série de características que se repetem na crença de que somos crianças abertas a ouvir o rosário de histórias da carochinha.

Polícia Militar e Polícia Civil, depois de desdenhar testemunhas e se apressar para enterrar a história no rodapé de seus arquivos mortos, resolveram se mover. Por que a mudança? No circo do óbvio, as duas corporações saíram da hibernação diante do atestado de paralisia exposto não apenas pela imprensa, mas também por centenas de pessoas nas redes sociais.

Há cinco dias, a Polícia Militar falava em falta de provas. Engavetou um inquérito preliminar. A Polícia Civil, por meio de um de seus delegados, jurava não ter visto sinais de agressão no auxiliar de limpeza da Unifesp.

Para amenizar o impacto da negligência, as duas instituições partiram para a estratégia de sempre: transformar obrigação em mérito. A Polícia Civil enviou para Santos um delegado do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, mais um grupo de investigadores. O crime aconteceu há 11 dias. A Polícia Militar também mudou de ideia. Agora, encaminhou o caso para a Corregedoria e para a Secretaria de Segurança.

A metamorfose também contaminou a própria Unifesp. Depois de quase duas semanas, a universidade largou o bastão dos omissos e divulgou nota oficial. A instituição resolveu, agora, repudiar o crime e oferecer ajuda à família do auxiliar de limpeza.

Para completar a redundância, a Unifesp pretende discutir a segurança do bairro com as autoridades. Após tantos assaltos, foi preciso aparecer um corpo para que a instituição se mexesse e entendesse a urgência de pensar a violência além da retórica.

Quando o mérito é insuficiente para mascarar obrigações, a ordem é avançar na ilusão da caridade. Neste sentido, é necessário falar em colaboração e deixar que isso soe como favor. Inverte-se a lógica da acusação. São curiosas, por exemplo, as declarações do advogado dos policiais.

Alex Ochsendorf, que foi policial militar enquanto estudava Direito, disse, em entrevista ao jornal A Tribuna, que os PMs “disponibilizaram os números de seus respectivos telefones e estão abrindo a intimidade deles para provar que não têm participação no crime ou nas supostas ameaças após a morte de Ricardo.”

É parte do espetáculo jurídico o blefe dos advogados. Mas é um insulto à inteligência crer que vamos engolir como favor as informações fornecidas pelos policiais. Eles estão sob investigação. Precisa dizer mais?

Além de nos conceder favores, transformar obrigação em mérito implica em cuidar das palavras. Trocá-las. Acariciá-las. Ajeitá-las para diminuir a gravidade dos fatos. Para o advogado dos PMs, as lesões no rosto do auxiliar de limpeza foram reflexos do “estado alterado” da vítima. O que isso significa? Que Ricardo se debateu a ponto da cabeça dele atingir as mãos dos PMs?

Enquanto todas as instituições tentam encenar seus papéis no teatro de sangue, os estudantes ficaram com o ônus da vida real. Muitos universitários estão fora da cidade ou morando em casas de amigos. Um deles, que presenciou a abordagem policial, fez – segundo reportagem de Bruno Lima, no jornal A Tribuna – um pedido de inclusão no Serviço de Proteção às Testemunhas, programa ligado ao Ministério da Justiça.

Para que mérito e obrigação não se diluam em impunidade, é fundamental que a história seja acompanhada não apenas pela imprensa, mas por todos nós. A questão não é julgar e condenar os policiais por antecipação. Eles precisam realmente provar que não mataram Ricardo. É direito deles á defesa. Mas, no mínimo, precisam retornar à academia porque dezenas de estudantes testemunharam uma lista de erros crassos de abordagem policial.

Só não espere das instituições a extinção da inércia. A cultura da paralisia está enroscada até nas tripas do poder. Ela pode se manifestar também pela transferência de responsabilidade. Coincidência ou não, um grupo de pessoas, composto por juristas e religiosos, além de representantes de entidades que trabalham com vítimas de violência, vai entregar essa semana uma carta ao governador Geraldo Alckmin.

O documento pede a criação emergencial de uma política de combate à tortura. A carta tem relação direta com o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que deve ser implantado em todos os Estados. Sabe o que a Secretaria de Justiça de São Paulo disse ao jornal Folha de S.Paulo? O assunto é de responsabilidade da Assembleia Legislativa. Só nos resta esperar quem ficará com o mérito depois da obrigação cumprida.

Quem Matou Ricardo? | Marcus Vinicius Batista

Fonte: Boqnews (http://www.boqnews.com/coluna.php?cod=17613)

Marcus Vinicius Batista

O medo e a indignação uniram estudantes e professores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Muitos vestidos de preto, eles saíram em passeata na última sexta-feira, em protesto contra a morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos.

Ricardo foi executado com oito tiros na madrugada de 2 de agosto, na porta de casa, na rua Silva Jardim, na Vila Mathias, em Santos. Os assassinos eram, segundo testemunhas, quatro homens, em duas motos. Ele trabalhava como auxiliar de limpeza na Unifesp, que fica na mesma rua.

Ricardo foi abordado por policiais militares quando acompanhava um protesto de estudantes em frente ao campus, dois dias antes da execução. Muitos alunos faziam imagens dos PMs. Segundo os estudantes, um deles xingou Ricardo, que devolveu a ofensa e, por conta disso, passou a ser agredido pelos policiais.

O problema é que os estudantes registraram a agressão com seus celulares. Como Ricardo acabou na viatura, muitos universitários resolveram segui-lo, inclusive por medo da repetição do caso Amarildo, pedreiro que foi detido por PMs no Rio de Janeiro e desapareceu, em 14 de julho.

Os universitários peregrinaram por dois distritos policiais até encontrarem os PMs na Santa Casa de Santos. Ricardo teria sido liberado por negar a agressão. Em 1º de agosto, Ricardo pediu que os estudantes saíssem da história porque havia sido ameaçado em casa.

O abuso de poder teria outros desdobramentos. Sem identificação, pessoas entraram na universidade para pedir as imagens do dia 31 de julho. E novas ameaças foram feitas contra universitários.

Depois da morte de Ricardo, muitos universitários estão apavorados. Um deles, cujo nome não pode ser revelado por razões óbvias, passou a dormir na casa de uma professora. Ele foi ameaçado de morte. Outros estudantes evitam se identificar em entrevistas ou nas redes sociais pelo mesmo motivo. Temem ser perseguidos quando estiverem sozinhos.

A Polícia Civil não viu ou ouviu nada. Em entrevista ao repórter Bruno Lima, de A Tribuna, o delegado-titular do 4º DP, Rubens Nunes Paes, disse que “desconhece as agressões físicas e as ameaças feitas pelos PMs”. A morte de Ricardo vai engrossar a estatística de casos não resolvidos? De cada dez assassinatos no Estado de São Paulo, nove não tem solução.

Já a Polícia Militar se apoia na velha tática de desqualificar a vítima. Para a PM, Ricardo estaria envolvido em tráfico de drogas. A resposta oficial toma como base o relato de policiais, que teriam atendido denúncia de tráfico na rua Silva Jardim, perto da casa da vítima. Como se não houvesse várias bocas de fumo no bairro, um dos mais pobres da cidade. Além disso, o comando da PM abriu investigação preliminar, já concluída por falta de provas contra os policiais que abordaram Ricardo.

Até quando a Polícia Militar vai resolver com velocidade espantosa as suspeitas que envolvem seus membros? A corporação vai aceitar as acusações de que existem, entre seus membros, bandidos de farda, sujeitos que mancham a roupa que vestem?

Ricardo possuía quatro passagens pela polícia, duas por tráfico e duas por receptação. Vizinhos e colegas da universidade dizem que o auxiliar de limpeza tinha mudado de comportamento. Isso teria incomodado, inclusive, policiais corruptos que recebiam presentes.

Pela lógica da execução, o passado assegurava o direito à aplicação de sentença de morte. Até quando a PM vai conviver, como se não fosse com ela, com as denúncias de atos de grupos de extermínio, que julgam, condenam e executam em seus tribunais da informalidade? Ou a ordem é aceitar, como lei do cão, que toda sociedade seja obrigada a ter seus Amarildos e Ricardos?

Obs.: Abaixo, um dos vídeos que mostram a abordagem dos policiais militares

http://vimeo.com/72021637